História Real: 'O diagnóstico da morte - Uma mulher pronta para morrer!'

By | segunda-feira, março 26, 2012 Leave a Comment


'Existem sensações na vida que são mais difíceis de relatar do que outras. Por exemplo: quando você beija alguém que ama. Por mais detalhista que seja a descrição, o outro nunca poderá experimentar a mesma coisa que você. Ou quando nasce seu filho. As dores, o choro e a emoção desse momento serão sempre inexplicáveis. Estou contando isso para tentar falar sobre o que passei naquela tarde chuvosa de sexta-feira. Por mais que eu explique você nunca conseguirá sentir o que realmente eu senti.
Enquanto muitos se preparavam para um final de semana maravilhoso ao lado de seus pares, eu permanecia em silêncio sentada numa cadeira. À minha frente, um homem de óculos quadrados me olhava com a maior piedade deste mundo. Na verdade, não conseguia distinguir mais o rosto dele. Eu só tremia. "Eu não entendi...", repetia, nervosa, segurando minha bolsa com a mesma força que tinha usado no parto de meu filho único, Rodrigo. "Juliana, você sofre de uma doença incurável. Fizemos todos os exames e...você tem uma sobrevida menor do que imaginávamos...", repetia, sussurrando como se não quisesse que eu escutasse.

Minhas pernas se mexiam no mesmo ritmo frenético do meu coração. Apertei mais a alça da bolsa. "Há quanto tempo tenho errr... isso?", perguntei, sentindo as lágrimas caírem de meus olhos em quantidade cada vez maior. Havia dois meses que tinha entrado naquela clínica pela primeira vez. Decidi fazer alguns exames porque estava me sentindo mal nos últimas mos tempos. A princípio, seriam apenas exames de rotina, desses que precisamos repetir sempre. No entanto, tive de refazer vários deles, porque havia a suspeita de que uma doença muito séria se alastrava dentro de mim.
"Você terá toda a assessoria do hospital e uma psicóloga para acompanhar seu tratamento. Ele, aliás, será reforçado. Isso poderá aumentar essa expectativa para um mês ou mais...", consolou-me o doutor, já acostumado a dar aquela notícia a outras pessoas. Fixei meus olhos em um porta-retratos na mesinha dele. "É sua família?", perguntei, enxugando as lágrimas. "Sim, minha mulher e minha filha", falou, com medo de que sua resposta me deixasse ainda pior.

Tentei esboçar um sorriso. "Também tenho uma foto assim. Meu marido, Fábio, eu e meu filho fomos para a praia no ano passado e ele tirou alguns retratos", contei como que sedada. Olhei o relógio. Já estava sentada ali havia uma hora. Fui embora. Mal consegui dirigir no trajeto de volta para minha casa. "Mãe, o pai me prometeu uma bola de futebol profissional", falou Rodrigo logo que me viu abrir a porta.
Forcei um sorriso e fui para o quarto. Atirei-me sobre a cama e desabei num choro doído. O maior de toda a minha vida. Com as mãos tensas, agarrava-me ao edredom na vã tentativa de não despencar de minhas esperanças e do pouco tempo que me sobrava para viver. "Por que eu, meu Deus", gritava, num misto de fúria, rancor e tristeza profunda. Ao levantar a cabeça, vi Fábio e Rodrigo parados na porta. Eles sabiam que eu havia ido à clínica pegar os exames. "O que foi, meu amor?", perguntou meu companheiro de tantos anos.

Em questão de segundos, olhei para os envelopes com meus resultados sobre a cadeira e notei que estavam discretamente fora do campo de visão dos dois. "Na clínica deu tudo certo. Mas no trabalho... Fui despedida!", disse sem pestanejar. Ter contado a maior mentira de minha vida naquele momento pouparia os dois seres que mais amava na face da Terra de morrerem aos pouquinhos, como acontecia comigo. Foi assim que começaram os meus dias finais.


Fábio me consolou dizendo que eu conseguiria um novo trabalho. Dei um sorriso amarelo. "Ouvi falar que lá na firma abrirão uma vaga para secretária do financeiro daqui a dois meses", lembrou antes de dormir. Fiquei olhando para seu rosto durante toda a noite. "Não estarei aqui daqui a dois meses", pensava, chorando baixinho. Na manhã seguinte, esperei que Fábio levasse Rodrigo à escola para voltar ao meu mundo triste. Sentada no vaso do banheiro, chorava, chorava e chorava.

"Por que comigo, meu Deus?", gritava, batendo as mãos contra o próprio corpo, como se tentasse me punir por ter aquela doença. O armarinho de remédios estava logo ali à minha frente. Dentro dele,muitos medicamentos com tarja preta que Fábio tomara na época em que teve problemas com a ex-mulher. Abri todas as embalagens e joguei os comprimidos sobre a pia. "Rodrigo, meu filho, mamãe te amará para sempre", repetia baixinho enquanto colocava algumas bolinhas na boca. "Um dia você vai entender."
Dentro de mim, a vontade de antecipar minha morte. Dentro de minha boca, cinco comprimidos que poderiam me ajudar a atingir esse objetivo rapidamente. Senti na língua o gosto amargo. Da depressão e da droga. No reflexo do espelho, vi uma luz. Era o Sol, que estava radiante naquela manhã de quinta-feira. Forte e solene, encheu todo o ambiente com seus raios. Cuspi os comprimidos na pia. Abri a porta da cozinha e saí para o quintal.Vi o astro-rei iluminar meu pequeno jardim. Pardaizinhos brincavam numa poça de água formada pela chuva da noite anterior.

Minha cadela brincava com um ossinho. Era um mundo onde cada segundo era aproveitado de uma maneira prazerosa. Sentei-me no chão e olhei para o relógio. Meu tempo estava correndo. Se era para continuar vivendo, que fizesse como todos aqueles bichinhos... Que passasse o último estágio me sentindo... bem! A primeira coisa que fiz naquela manhã foi ir até a escolinha do Rodrigo. A professora se surpreendeu com a visita daquela mãe tão ausente nos últimos anos. Minutos depois, carregava uma criança sorridente rumo ao shopping center.
Passamos a tarde inteira lá. Rodrigo mal acreditava no que estava acontecendo. "Mãe, a senhora me trará sempre aqui?", perguntou com a boca suja de algodão doce azul. Eu sorri, mas não tive coragem de responder. Quando Fábio chegou em casa, encontrou o jantar servido numa linda mesa. Duas velas acesas a enfeitavam. "É nosso aniversário de casamento?", perguntou rindo. Aproveitamos que Rodrigo dormiu e ficamos namorando na sala, como não fazíamos havia tempos. "Se perder o emprego te deixou tão romântica, acho que vou sustentá- la daqui por diante", brincou.
Olhei fundo nos olhos do homem com quem me casara fazia cinco anos. "Tenho algo muito importante para dizer." Ele notou o tom sério e segurou minhas mãos. "Fala, Juliana, pode falar", sussurrou. Engoli em seco. "Saiba que te amo muito", declarei, aos prantos.

No café da manhã, Fábio deu um sorriso de satisfação após receber um telefonema. "Amanhã terei aquela reunião no banco sobre o financiamento. Acho que em dois meses podemos assinar os papéis e procurar o sobradinho dos nossos sonhos", murmurou. Fiquei olhando seus olhos escuros sem piscar por alguns instantes. "Que bom!", respondi, pensando na casa que jamais conheceria.
Levantei e fui lavar a louça.Tinha marcado consulta com a psicóloga, mas não via razão alguma para ir. De que me adiantaria receber conselhos àquela altura do campeonato? Isso me faria viver mais? Sentia que já não raciocinava como antes. Estaria enlouquecendo? Naqueles dias, passava a maior parte do tempo com uma tremenda taquicardia, além de muitos enjôos. Era meu corpo avisando que meu fim se aproximava. "Eu não posso parar agora!", disse a mim mesma, antes de sair para a rua.

Parei na loja mais chique do bairro e comprei o vestido que há tempos namorava. Lindo, vermelho, de seda, caiu em meu corpo como uma luva. "Você vai arrasar na festa!", disse a vendedora, satisfeita com a comissão que levaria graças ao meu impulso de consumo. Saí da loja trajando a nova roupa. "O que vou fazer agora?", me perguntei, olhando ao redor.
Finalmente, entrei num cinema. Fazia tempo que não via um filme. Era uma comédia. Naquele horário, só havia crianças e velhinhos. A única adulta era eu. Quer dizer, eu e um moço muito bonito. Ele ficou me olhando, comendo-me com os olhos. Em anos e anos de casada nunca havia traído meu marido. Muitas vezes havia pensado em outros homens enquanto estávamos na cama e tenho certeza de que Fábio havia feito o mesmo. Mas traição? Nunca! O moço se aproximou e sentou na mesma fileira que eu. Continuei em silêncio e comecei a suar em bicas.

"Boa tarde", falou baixinho, numa distância respeitosa. Respondi e me virei. Ele podia ser algum tarado e me fazer mal. Se tentasse algo à força, enfiaria a mão nele. "Adoro filmes com esse cara", falou, apontando para a tela. Pela primeira vez, o observei. A luz estava fraca, mas podia distinguir seu rosto. Era loiro, olhos claros, magro e com um cabelo repicado. "Seu vestido é mais bonito do que o da atriz!", insistiu, notando que eu sorria. Então, veio a imagem de Fábio em minha cabeça. Nossas juras de amor, nosso noivado, o casamento, o nascimento de Rodrigo...Veio tudo!

Dois sentimentos explodiam dentro de mim quando entrei num pequeno hotel com aquele desconhecido. Um era o de arrependimento por trair alguém que amava. O outro era o de fazer algo que nunca faria de novo. Mesmo confusa, me entreguei a Paulo Henrique - esse era o nome dele - com toda a volúpia. E enquanto ele me beijava e me tocava das maneiras mais safadas, mergulhei num ritual íntimo de mudança. Não era mais a comportada dona-de-casa à espera do marido e do filho. A cada dia me transformava numa outra pessoa. Alguém que já não se importava com nada, a não ser com ela mesma.

Não conseguia mais olhar meu marido da mesma maneira. Era como se, aos poucos, ele fosse ficando transparente. O amor que eu alimentara durante tantos anos dava lugar ao esquecimento. "Ligaram do seu trabalho. Parece que tem um documento para pegar lá...", falou enquanto jantávamos. Senti medo de que a secretária do escritório tivesse revelado que, na verdade, eu pedira demissão.
Pelo silêncio distraído de Fábio, tive certeza de que ele não havia descoberto a verdade. Fui tomar banho. De repente, fiquei tonta. Por muito pouco não desmaiei. Meu corpo avisava que somente aguentaria por mais algumas semanas. Olhava toda aquela medicação prescrita pelo médico sobre a pia com desdém. "De que adianta isso?", murmurava, enquanto tentava me manter lúcida. Abaixei a cabeça e vomitei. "Ju, abra a porta", gritou meu marido, percebendo que algo estava acontecendo.





Minutos depois, eu abri, de cara lavada e me sentindo melhor. "Amor, o que houve?", perguntou, preocupado. Sorri. "Reação a um remédio para regime que estou tomando...", menti. "Eu? Dieta?!", repetia para mim mesma no café da manhã seguinte. Fritei quatro ovos e muito bacon. Comi como nunca. Passara boa parte dos meus 28 anos querendo perder peso, tentando evitar pneuzinhos e celulite. "Mas e agora? Para que um corpo em forma se ele não servia para mais nada?", questionei, chorando e praguejando meu cruel destino.

Fui a uma doceria e comi todas as delícias que sempre desejara. Uns oito doces. Lógico, passei mal. Mas o sabor apaziguou um pouco o amargo da decadência, do meu fim. "Quer que eu vá buscá-la na despedida de solteira de sua colega?", perguntou meu marido, envolvido em mais uma mentira minha. Mais tarde, naquele sábado, estava entrando numa animada boate. Rapazes e moças circulavam com roupas coloridas e olhares furtivos. Todos procurando algo... ou alguém.
No terceiro copo de vodka, tomei coragem e me aproximei dela. Brena era seu nome: uma morena esguia, cabelos compridos e lábios finos. Por sorte, foi com a minha cara e engatamos uma conversa. Pelo calor da bebida e por toda a loucura que se passava na minha cabeça, dei-lhe um beijo. Nunca havia provado uma relação lésbica. Porém, por alguma razão, não achava justo morrer sem arriscar.
Beijei-a com desejo. Mas não o desejo do sexo e da novidade e, sim, a ânsia de que ela, de alguma maneira, me libertasse de meu destino cruel. Queria que aquele longo beijo repleto de língua e saliva fosse uma ponte para que eu saísse de um pesadelo. "Você é linda, Amanda!", repetia a garota, sem saber que aquele nome era falso. Não fizemos amor, porque eu não consegui, mas as carícias saciaram minha curiosidade.

Durante a madrugada, quando aninhei-me em Fábio na cama, sussurrei em seu ouvido: "Será que você vai me esquecer rápido?" Não dormi. Apenas chorei e me recolhi na contagem regressiva de meus dias. Restavam-me, agora, duas breves semanas.

Durante os quatro anos em que eu morava naquela casa, uma vizinha me causava tristeza. Dona Henriqueta, era o nome dela. Ela gritava com o filho todo o tempo e eu temia que a pobre criança tivesse algum tipo de sequela por causa da mãe histérica. Nunca havia feito nada, confesso, por puro comodismo. Mas agora tinha razões suficientes para tomar uma atitude.
Era uma quarta-feira à tarde, quando ouvi o pequeno chorando, enquanto ela praguejava em alto e bom som. Corri ao quarto de Fábio e peguei sua filmadora. Pela janelinha do banheiro, registrei a louca ameaçando a criança, num ato de covardia explícita. O pequeno chorava copiosamente enquanto ela exibia uma cinta. Hesitei, por um instante, em largar o equipamento, ir até lá. Passados 15 minutos, a vi sair sozinha da casa, deixando a criança em cárcere privado. Pensei no filho que iria perder, no quanto o amava e comecei a chorar.

Logo que toquei a campainha, o assustado garotinho veio até ao portão. Seu rostinho inchado denunciava o abuso. Um vergalhão em seu braço também. "Tudo vai dar certo", disse, acariciando seus cabelos entre as grades. Na mesma semana, um promotor recebeu aquela fita com o endereço. Apesar da carta ser anônima, decidiu investigar e a guarda do menino foi transferida para uma tia - muito carinhosa soube eu, mais tarde. Contei a Fábio toda a história. "Você agiu como um anjo da guarda; por que não fizemos isso antes?", ele dizia, em tom de culpa.
"Porque eu achava que teria mais tempo na vida para tomar essa atitude", pensava, olhando-o com tristeza. De repente, o mal-estar. Disfarçando, fui para o quarto. Concentrada em não desmaiar, passei para o banheiro e alcancei o armário de remédios. Após uma dose cavalar, veio o alívio. Ainda enjoada, abracei as fotos do meu marido e de Rodrigo e repetia baixinho seus nomes. "Eu não quero deixar vocês!" Mais tarde, servia o jantar para os dois. "Juliana, estou achando você estranha... você está bem, meu amor?" Suspirei. "Eu estou para entrar naqueles dias...", sussurrei.

Meus homens se entreolharam num olhar cúmplice que, provavelmente, queria dizer "não mexa com a mamãe que os hormônios dela estão a mil!" Fábio me procurou na cama naquela madrugada. Fechei os olhos e o senti dentro de mim. Ele sempre me fazia feliz na cama. No meio da transa, parei. "Posso te pedir uma coisa?", perguntei. "O quê?", respondeu, com o coração acelerado. "Quero que você nos fotografe assim como estamos, agora!" Ele sorriu, incrédulo, e não pensou duas vezes. Pegou a câmera e me clicou nua, tocando o meu corpo e o dele.
Aquela máquina registrou o momento exato do nosso orgasmo. Num frenesi absoluto, Fábio retratou nosso êxtase, nosso sexo e nossa união. Refeitos de tudo, mostrou-me no visor da máquina todos os registros que havia feito. Prometeu guardar para sempre. Assim, nos inspiraríamos nas próximas vezes em que fôssemos pra cama. Mal sabia ele que aquela havia sido a última... 

Olhava o calendário na parede. Naquela manhã, não estava com vontade de sair da cama. Tinha a sensação de que seria melhor ficar deitada esperando, esperando, até que um anjo soasse suas trombetas avisando da minha partida. "Como será que morrerei?", pensava. "Vou sofrer muito ou simplesmente acontecerá durante meu sono?", cogitava baixinho, enquanto contava os dias que ainda me restavam. Àquela altura do campeonato, não sentia mais vontade de chorar.
Ainda na cama, lancei meu olhar para o teto do quarto, pintado de gelo há poucos meses. Fiquei assim até adormecer. Fraca, não conseguia sequer me levantar e realizar alguns últimos desejos. Simplesmente, queria partir de uma vez. Olhei para o relógio: 15h. Com dor no corpo e tontura, levantei e fui à janela da sala. O brilho do sol ofuscou minha vista. Do outro lado da calçada, o mesmo mendigo de sempre. Era um senhor de uns 65 anos, sujo, com roupas rasgadas e cabelos desgrenhados. Ele "morava" na garagem daquela loja abandonada há tempos. Fui até ele.

O pobre homem não acreditou quando viu aquela mulher pálida e enfraquecida colocar uma enorme cesta de vime à sua frente. Nela, vinhos, queijos, conservas e enlatados importados, ganhos de um cliente de meu marido no Natal. Voltei para casa e, da janela, espiei o mendigo saciar-se com a bebida e a comida. Era seu primeiro banquete em vida, talvez. Agora, faltavam dois dias. Se meus cálculos estavam certos, seria meu penúltimo dia de vida. Por incrível que pareça, minha letargia era mais forte que o medo de morrer. Sempre imaginei que fosse partir dessa para melhor de uma maneira diferente...
De que aconteceria quando tivesse 90 anos ou num acidente inesperado. Jamais havia cogitado a morte assim, de maneira tão fria, como se eu fosse um pedaço de carne com a data de vencimento às vésperas de expirar. Já caía a tardezinha, quando fui tomar banho. Fiquei meia hora sob a ducha, tentando relaxar. Meu coração batia forte. Nem parecia que pararia de vez no dia seguinte. Preparei o jantar com todo o requinte possível.
Fábio ficou pasmo diante da mesa decorada e do assado de lagarto que exalava um delícioso aroma pela casa. Pelos olhares que trocamos à mesa, eu, ele e nosso pequeno, parecia que eles sabiam o que estava acontecendo. Não fizeram perguntas nem me questionaram sobre a razão daqueles pratos. "Mamãe, a gente vai no shopping de novo?", perguntou Rodrigo, lambuzado de molho. Sorri e dei um beijo em sua bochecha. Quando senti uma lágrima brotar de meus olhos, dei um grito: "E se a gente fosse fazer a digestão na praia...agora?", disse, eufórica.

Há tempos, Fábio havia sugerido que fizéssemos uma viagem relâmpago ao litoral apenas para ver o sol nascer. Era sexta-feira e ele cedeu à alegria de Rodrigo e ao meu desejo surpreendente. Uma hora depois, eu e as pessoas que mais amava sentávamos na areia fofa. Eles queriam curtir o inusitado momento e eu... apenas ver meu último nascer do sol.

Naquela manhã, não tive coragem de ligar para o médico para confirmar se aquele seria meu último dia de vida. Durante o café da manhã, olhava, silenciosamente, para meus dois homens. De repente, via tudo em câmara lenta. Hábitos comuns, como passar manteiga num pão para Rodrigo, se transformaram em algo mágico: era a última vez que faria aqui-lo.

Mal conseguia discernir o que falavam. Fui tomada por uma surdez temporária e só os via movendo os lábios. Cerrei meus olhos por um segundo. Vi meu corpo num caixão. Estava coberto de flores. Pessoas choravam a meu redor. Entre elas, meu marido e meu filho. Senti Fábio tocar minhas mãos frias e o esforço que fazia para me acordar de meu sono eterno.
Abri os olhos. "Amor, você está meio desanimada hoje. O que foi?", dizia, segurando, de fato, minhas mãos. "É sono!", respondi, ensaiando um sorriso. Rodrigo veio até mim com os bracinhos estendidos: era hora do nosso abraço de despedida matinal. "Tchau, mãe!", falou, como de costume. Encostei minhas narinas em seu pescoço e senti o cheiro de seu sabonete infantil. Quando ele ia sair, continuei apertando-o contra meu corpo.

"Filho, mamãe te ama muito, viu?", murmurei, segurando as lágrimas. Ele se desvencilhou de mim, sem entender nada. Notei que Fábio me olhava também de uma maneira estranha. Foi assim que me despedi deles. Debaixo daquela garoa fina, meu elo com a vida partia. Fiquei olhando-os até que entrassem no carro.Voltei para o quarto e me deitei. Era só esperar. Por um momento, quis ligar a meus poucos amigos e amigas e avisar da minha morte. Mas, seria esquisito.
Vesti uma roupa branca. Era uma maneira de os anjos perceberem que havia sido uma boa alma. Não tinha entrado muito em igrejas, mas acreditava em Deus. Ele viria me buscar no decorrer daquelas horas. Limpei a casa e deixei tudo arrumado. Peguei papel e lápis e escrevi um bilhete. Foram três rascunhos até que chegasse à ver-são final: "Fábio e Rodrigo, amo vocês". Caminhei de volta ao quarto e me deitei. De barriga para cima, sentia minhas lágrimas escorrendo. Fechei os olhos, respirei e pedi a Deus que acabasse logo com aquilo.

Fiquei a tarde inteira nesse estado, até que reconheci o barulho do carro de Fábio. Era noite, e eles estavam voltando. Eu me sentia estranhamente bem.Fui à cozinha, peguei o bilhete, rasguei e joguei no lixo. Ao abrir a porta, dei um sorriso emocionado e os abracei. "Bem-vindos de volta ao lar, meus amores." Eles sorriram. Acordei no dia seguinte e prossegui minha vida.
E foi assim por dias, semanas e meses. A morte simplesmente não veio. Aos poucos, já não me importava mais com um fim que viria com ou sem aviso prévio. Estava vivendo minha existência com a intensidade e prazer que todo mundo deveria sentir. E isso era muito mais importante que apenas esperar por uma manhã em que não acordaria mais para servir o café da manhã para meus dois homens.'

||THE END||


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